Crianças do Caminho

Crianças do Caminho é uma exposição que aconteceu em maio de 2019. O objetivo das fotos foi retratar as crianças da comunidade de remanescentes quilombolas Beco do Caminho Curto e pensar no olhar delas para o futuro delas. As legendas abaixo das fotos foram feitas depois de conversar com as crianças enquanto elas foram fotografadas, em 2018 e 2019. Pode ser que elas tenham mudado de opinião desde lá.

Brenda, ela tem 3 anos e quer ser médica quando crescer.

Em Joinville, com sua colonização predominantemente alemã, não se fala sobre o papel da população afrodescendente na colonização da cidade, tampouco sobre suas tradições, memórias e cultura. Relatos históricos comprovam a utilização de mão de obra escrava na construção da então Colônia Dona Francisca.

Com a abolição do sistema escravista de trabalho no Brasil, em 1888, a comunidade ex-escrava foi lançada às margens da sociedade e se agrupou em comunidades remanescentes de quilombos em locais mais isolados. Quando se fala em Quilombo, os esconderijos criados por escravos fugitivos na época do Brasil Colônia, imagina-se algo que acabou junto com a escravidão, porém muitas destas comunidades passaram gerações resistindo ao peso do tempo, e ainda existem atualmente.

Em Joinville temos a comunidade Beco do Caminho Curto, no Distrito de Pirebeiraba, que são remanescentes quilombolas e ainda vivem à margem da sociedade. Até hoje a localidade se depara com a falta de saneamento básico, energia elétrica e a escassez de horários do transporte público que dificultam uma rotina de trabalho e estudo. Apesar disso, os moradores mantém uma ligação sentimental com passado e se sentem acolhidos e protegidos pela comunidade e suas tradições.

Maria Sophia, ela tem um pouco mais de 1 ano e tem bastante tempo para escolher o que vai ser quando crescer.

Contudo, os descendentes desta população receberam uma boa notícia, uma portaria da Fundação Cultural Palmares (FCP) publicada dia 10.05.19 no Diário Oficial da União, certifica a comunidade como quilombola. Esta certificação amplia, ampara e valoriza o patrimônio cultural brasileiro e afro-brasileiro despercebido e desperdiçado.

Com a intenção de entender, levar oportunidades e melhorias para essa comunidade a Univille, em parceria com os professores Tales Vicenzi (História), Sirlei de Souza (Direito) e Jonathan Prateat (Publicidade e Propaganda), criou o Projeto Caminho Curto, que acontece desde 2018, promovendo atividades e oficinas envolvendo assuntos como direitos humanos, debates pertinentes às populações afrodescendentes, bem como direitos ligados à terra, saúde e educação e foi fundamental no processo de certificação da comunidade como quilombola.

Foi no envolvimento com este projeto que o fotógrafo Roy Schulenburg se deparou com As Crianças do Caminho, título de sua primeira exposição.

Mesmo sabendo que uma pessoa branca nunca vai compreender legitimamente o racismo, Roy entende que precisamos encontrar caminhos para discutir a estrutura racial enraizada em nossa sociedade, para isso é preciso ouvir, entender o que é lugar de fala e fortalecer o processo de empatia. Só assim podemos vislumbrar e contribuir para um futuro de igualdade e antirracista.

Maria Vitória, ela tem 5 anos e disse que quer ser grande como a mãe dela.

E é exatamente sobre o futuro que Roy quer falar com sua exposição CRIANÇAS DO CAMINHO, o olhar puro das crianças que vivem nesta comunidade, traz esperança de um mundo melhor, é por essas crianças que a sociedade precisa rever padrões e não diminuir a dimensão dos problemas raciais e a falta de consciência humana que ainda vivemos até hoje.

É preciso olhar para si mesmo e entender seu lugar na sociedade e buscar conhecimento sobre educação racial e os reais impactos a sua volta.

O texto acima foi escrito pelo curado da exposição Marc Engler. Você pode entrar em contato com ele pelo Instagram dele aqui ou via WhatsApp

José Armando, ele tem 7 anos e vai ser estrela da seleção de futebol.

Sobre o Projeto Integrado do Caminho Curto

Segundo o Dicionário Michaelis (2018), a palavra quilombo significa: “No período colonial, comunidade fortificada formada por negros fugitivos e por uma minoria branca e indígena, organizada politicamente, representando uma forma de resistência e combate à escravidão”. Tais territórios, que serviram como espaços de resistência, também funcionaram como espaços de preservação das diversas culturas originárias dos países africanos de onde os homens e mulheres escravizados vieram. Além disso, por conta de seu isolamento, os quilombos também construíram suas próprias tradições. Segundo o site da Fundação Palmares (2015), “esse isolamento fazia parte de uma estratégia que garantiu a sobrevivência de grupos organizados com tradições e relações territoriais próprias, formando, em suas especificidades, uma identidade étnica e cultural que deve ser respeitada e preservada”.

Foi publicado no site do Governo Brasileiro (2018) que até o dia 27 de janeiro de 2017 o Brasil possuía 2.890 quilombos certificados pela Fundação Palmares. Desses 2.890, segundo dados da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (BRASIL, 2010), 13 se encontram em Santa Catarina como certificadas, e nenhuma delas fica localizada em Joinville.

Entretanto, a situação social das comunidades remanescentes quilombolas ou mesmo habitadas de forma geral pela população negra em todo o Brasil é crítica, e essa condição originou-se como consequência do período da escravidão. Falar sobre a história dos afrodescendentes no Brasil é um processo de desvelamento de uma narrativa repleta de lacunas, intencionais e naturalizadas. A representação sobre o afro no Brasil carrega consigo o discurso dos vencedores, como pensa Leite (1999):

Em 1888, quando da Abolição da Escravatura, perdemos a chance de construir uma nação menos desigual e mais diversa. As elites políticas não estavam dispostas a superar o racismo e incluir os africanos e seus descendentes na nacionalidade brasileira recém-criada.

Brian, ele tem 8 anos e vai ser jogador de futebol quando crescer.

Nesse sentido, procurou-se construir uma nação mais branca, com o estímulo da imigração de europeus, que ocuparam os postos de trabalho qualificados no lugar dos antigos escravizados. O trabalho livre e assalariado foi o discurso legitimador do processo de transformação do Brasil escravocrata e monarquista, em um país republicano e capitalista. Aos libertos restaram os subempregos e a economia informal. Assim como no restante do Brasil, o período de escravidão e a subsequente abolição originaram uma estratificação social na qual a população negra, em sua maioria, se encontra em situação de carência.

Como consequência, a população negra foi liberta do regime escravocrata, mas sem acesso aos direitos básicos como saúde, emprego, educação, terra para trabalhar, entre outros. Isso se reflete nos indicadores sociais da população brasileira. Entre eles, está o indicador relativo ao mercado de trabalho, apresentado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) no ano de 2009.

Miguel, ele tem 3 anos e quer trabalhar como os homens que trabalham com trator, perto da casa dele.

Segundo o órgão, a taxa de desemprego do homem negro era de 6,6%, enquanto do homem branco, de 5,3%. A disparidade era ainda mais evidente entre as mulheres: 12,5% das mulheres negras estavam desempregadas, enquanto 9,2% das mulheres brancas estavam na mesma condição (IPEA, 2011).

Os dados supracitados conflitam com o texto da Lei n.º 12.288, sancionada em 20 de julho de 2010, que em seu artigo 1.º institui: “O Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica” (BRASIL, 2010).

Nesse contexto, o Projeto Integrado Caminho Curto: Vivências de Ensino, Pesquisa e Extensão na Promoção da Cidadania, tem como objetivo principal desenvolver atividades de ensino, pesquisa e extensão com a Comunidade Caminho Curto, proporcionando integração entre comunidade e universidade para o conhecimento de sua história, promoção da cidadania, e tentativa de ajudar esse grupo a superar as consequências da escravidão e do racismo.

Vitor, ele está na 2ª série e vai ser jogador de futebol quando crescer.

Dentre as ações desenvolvidas em 2018 e início de 2019 estão oficinas de saúde e higiene bucal,

1. Visitas periódicas de uma psicóloga e levantamento da situação dos exames principais das mulheres da comunidade;
2. Levantamento da situação territorial da comunidade;
3. Oficinas de artesanato para geração de renda;
4. Encontros para recreação com as crianças;
5. Oficina de tranças afro;
6. Contação de histórias;
7. Reforço escolar para crianças e adolescentes;
8. Parceria com defensoria pública para resolução de problemas de acesso a transporte, educação e saúde;
9. Doação de brinquedos, alimentos e materiais de limpeza.

Vinicius, ele tem 4 anos e já sabe o que quer: ser craque no futebol.

Graças ao trabalho conjunto entre uma série de entidades, empresas, defensoria pública e o Projeto Caminho Curto, a comunidade obteve, no ano de 2019, sua certificação oficial como remanescente quilombola.

Esperamos que as crianças, lindamente fotografas pelo professor Roy, possam ser adultos protagonistas de suas vidas, vistos por todos pela sua capacidade de transformar e agir como cidadão dignos, respeitados pela sua origem, pela sua afrodescendência, pela sua cultura, e, principalmente, pela sua humanidade.

O texto acima foi escrito pelo professores Jonathan Prateat (você pode entrar em contato com ele clicando aqui.), Sirlei de Souza e Tales Vicenzi

Gustavo, ele tem 11 anos e não sabe o quer ser, mas tem bastante tempo para decidir.

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Café, conversa e música boa